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Personagens do Basquete Brasileiro: Guerrinha

Fábio Balassiano

17/03/2015 01h00

O técnico Jorge Guerra acaba de conquistar o continente. Campeão da Liga das Américas por Bauru, o ex-jogador da seleção por 13 anos tornou-se há anos um dos melhores treinadores do país e no domingo, no Rio de Janeiro, colocou em sua estante de troféus um dos poucos que ainda não tinha ganho em sua vitoriosa carreira.

Nascido em Franca há 55 anos, ele se diz completamente diferente fora das quadras do que o cara que fica à beira dela orientando e falando compulsivamente com seus atletas e assistentes. Filho de Osvaldo Guerra e Maria Bernabe Guerra, casado com Renata e pai de três filhos (Guilherme, engenheiro ambiental, Marcelo, agrônomo, e a Carolina, que estuda nos Estados Unidos), o cozinheiro e jardineiro de mão cheia tem uma história bem linda na modalidade. Guerrinha é um dos melhores "Personagens do Basquete Brasileiro" que há. Vamos a entrevista que fiz com o campeão da Liga das Américas 2014/2015 por Bauru.

BALA NA CESTA: É a conquista mais emocionante de sua carreira?
GUERRINHA: Isso é resultado da química, de como esse time se entrosou em tão pouco tempo. Um projeto novo, de cinco meses e que já estamos colhendo resultados. Queremos mais e vamos trabalhar para isso. O Mundial vem aí e temos condição de jogar de igual para igual com qualquer equipe da Europa. Estamos muito felizes. Conquistar a Liga das Américas é a realização de um sonho.

BNC: Você considera que esta conquista não é só de Bauru, mas sim de todo um basquete brasileiro que se organizou através da Liga Nacional
GUERRINHA: Sim, sem dúvida. O resultado de Bauru é reflexo de todo basquete brasileiro e do trabalho que vem fazendo a Liga Nacional. Os últimos três anos temos equipes brasileiras ganhando a Liga das Américas. Bauru é um produto dentro de uma organização, dentro de um planejamento, e reflexo dentro do basquete brasileiro de clubes. A gente fará de tudo para representar bem o Brasil no Mundial, como fez o Flamengo contra o Maccabi em 2014. Só posso agradecer a Bauru e não posso esquecer de também agradecer aos demais técnicos brasileiros. Nós trouxemos quatro jogadores de fora, de outros times e eles já chegaram muito bem.

BNC: Sua história no basquete não começou neste fim de semana. Onde iniciou tudo?
GUERRINHA: Meus pais moravam a duas quadras do Clube dos Bagres, em Franca. Pra quem não conhece, o basquete em Franca começou no IETC, um colégio que o Pedroca dava aula, e no Clube dos Bagres, local que as pessoas iam jogar depois da escola. Então basquete em Franca era escola e clube. Eu comecei assim também. E é o que falta hoje, né? Fala-se muito em especialização, que é importante, mas falta muito o esporte em escolas e clubes. Foi uma sequência até certo ponto natural. Para você ter uma ideia, por Franca eu fui cinco vezes campeão paulista, cinco vezes campeão brasileiro, cinco vezes sul-americano e uma vez vice-mundial. E sabe quantos títulos colegiais do estado? Um só. Era difícil pra caramba, muito disputado.

BNC: Mas nesse começo, como era? Seus pais te incentivavam?
GUERRINHA: Não, nada disso. Meu pai tinha uma fábrica de chuteira em Franca. Meus irmãos jogaram futebol quase que profissionalmente. Fazia natação, judô, futebol e basquete como todo mundo. Como era muito disciplinado, ficava vendo os treinos no Clube dos Bagres pra depois fazer igual. Queria ver, aprender e repetir depois. Era minha rotina. Até que um dia, com o passar do tempo, quando tinha 14, 15 anos, era muito bom no um contra um, nos joguinhos de arremesso. Acho que esse basquete de rua, essa malícia boa que o jogo de rua dá, faz muita falta hoje em dia. Quando faltava alguém no treino eles me chamavam. Aí não parei mais. Eles começaram a ver meu potencial e fui ficando. O Pedroca gostava porque eu era muito disciplinado. Tudo o que ele pedia pra eu fazer uma vez já saía como ele queria. Isso sempre esteve muito comigo. Quando eu fui treinado pelo Edvar Simões no Monte Líbano, ele chegou pra mim e disse: "Olha, você é muito inteligente. Não consegui te dar uma bronca neste ano".

BNC: E não levar bronca do Edvar é um feito, hein…
GUERRINHA: (Risos) E ele disse: "Porque você não fez um erro para eu te dar bronca. Tudo o que lhe pedi você fez". Eu era tão disciplinado quando jogador que só de ouvir o técnico pedir coisas aos outros jogadores eu já sabia o que tinha e o que não tinha que fazer. O atleta que tem essa percepção sai na frente e adianta muito o trabalho do técnico. Em casa ouvia meus pais falarem com meus irmãos mais velhos e aprendia. Na quadra foi apenas a extensão disso.

BNC: E como foi jogar no time adulto da cidade que você nasceu? Imagino que uma emoção tremenda…
GUERRINHA: Ah, sim, foi uma emoção imensa. Quando era adolescente entrava nos jogos com a bolsa dos atletas para não pagar ingresso, sabia? Aquela coisa de moleque. O Hélio Rubens, o Fausto e os outros caras chegavam, eu pegava a bolsa e ia entrando no ginásio. Depois evoluí. Eu, para não perder os jogos, fazia a súmula das preliminares e depois via o jogo principal. Aí comecei a jogar as preliminares. Aquilo era um sonho pra mim. Imagina, jogar a preliminar no ginásio de Franca. E fico pensando muito nisso. As coisas acontecem tão rápido que a gente nem se dá conta. Costumo dizer aos meus atletas. Demora muito para você ter 18 anos e tirar a carteira de habilitação de motorista, né? Depois que tira a carteira é tão rápido que você nem percebe que precisa renovar a carteira. E jogador é a mesma coisa. Você está ali naquela fase de juvenil, quando vê já está como veterano do time. Passa muito rápido e pra mim foi um elemento de formação muito grande ter convivido com o pai do Helio Rubens, Seu Chico Cachoeira. Ele viajava com a gente e dava muito conselho sobre o que fazer ou não. Vivi naquela década de 70, 80 que tinha muita droga, muita coisa solta. E a gente tinha que manter a cabeça no lugar, ter um objetivo muito certo. Até brinco nas minhas palestras que quando você nasce em Franca te jogam na parede. Se ficar na parede é jogador de basquete. Se cair vira sapateiro. E eu fiquei na parede mesmo com um pai como dono de fábrica de calçado. A logística de morar perto do clube ajudou muito também.

BNC: Como foi jogar com os ídolos? Hélio Rubens, Fausto (foto à direita)…
GUERRINHA: Poxa, eu fui reserva do Hélio Rubens por quatro anos. Aprendi horrores com ele. Muito mesmo. Entrei no adulto com 15 para 16 anos. Quando cheguei era incrível o time. Eram cinco jogadores de seleção e dois estrangeiros. Treinar ali já te evoluía muito. Adilson, Gilson, Robertão, Fausto, Hélio, só craque, cara. Foi um sonho jogar com eles. E aprendi demais, posso te dizer isso. Hoje os jogadores querem jogar muito rapidamente. Para mim foi um doutorado ter estado com eles. Defesa, leitura de jogo, decisão, respeito.

BNC: E o Pedroca (foto à esquerda), lendário técnico de Franca, como era?
GUERRINHA: Vou lhe dizer: ele era um péssimo técnico de quadra, porque ele se envolvia emocionalmente com a partida e com os atletas durante os duelos, mas um excelente treinador. Visionário mesmo. Aquelas coisas que ele falava há 40 anos, tipo de não deixar o adversário pensar, são regras até hoje. Franca, naquela época que comecei, era um time baixo. Quando tinha um cara de dois metros eles foram buscar lá no Rio de Janeiro. Foi o Robertão, pivô que era do bairro do Zico (Quintino), lá no Rio. Todo mundo marcava por zona. Mas o Pedroca pensou diferente. Como éramos baixinhos e tínhamos um ótimo preparo físico a gente marcava pressionado, fazia pressão a quadra toda. Se a gente jogasse os grandões pra fora da posição ideal deles o adversário ia para o improviso. E aí a gente ganhava. Foi assim que foi formada a escola de Franca de Basquete. Time baixo, marcava muito, transição rápida de contra-ataque. Veio de uma necessidade e o Pedroca teve essa visão. Ele tinha uma didática completamente diferente. Eu faço muitas coisas no meu time que ele nos ensinou.

BNC: Você lembra de algum causo ou história engraçada sua com ele que possa contar?
GUERRINHA: Em 1973 a Coca-Cola patrocinou um intercâmbio de basquete e veio a Franca o Tex Winter (foto à direita), o criador do Sistema de Triângulos, famoso no Chicago e no Lakers do Phil Jackson. E na época eu gostava de ficar perto do técnico pra ver o que eles pensavam. Tinha gente que já dizia que eu era técnico enquanto jogava. Mas, bem, aí vi lá com o Pedroca o Tex Winter e perguntei o que ele tinha achado. A resposta dele foi sensacional: "Você precisa entender o conceito por trás das palavras dele. Não adianta usar o remédio dele e tentar usar no seu enfermo porque as necessidades e capacidades são diferentes. Não adianta ficar copiando". Ele disse isso pra mim em uma época que os treinadores iam para palestras e clínicas e só voltavam com apostilas imensas. Hoje a gente vê muito isso, né? Ninguém fica só anotando, é preciso entender os conceitos. Ele falava isso em 1973, hein…

BNC: E ele era ruim mesmo de jogo?
GUERRINHA: De jogo ele era ruim, mas no treino nunca vi igual. No jogo ele se perdia porque ele era muito educador, muito professor mesmo. Por exemplo. Um jogo o Hélio estava mal e o Fausto estava bem. Aí ele falava: "Entra lá no lugar do Fausto". E aí eu perguntava se não era melhor deixar o Fausto, que estava bem, tirando o Hélio, que estava mal. E ele emendava: "Deixa ele lá que ele vai melhorar". É o educador. Não estava preocupado com o resultado, mas sim com o ser-humano. É lindo isso, mas hoje em dia isso é impensável.

BNC: Foram 20 anos pelo time de Franca, é isso?
GUERRINHA: Fiquei em Franca de 1975 a 1992 na equipe do Franca. Aí fui pro Monte Líbano, joguei um ano e atuei quatro anos na outra equipe que tinha aqui em Franca, o Dharma. As pessoas em Franca falam que jogando pelas equipes da cidade é o Chuí que detém o recorde de mais partidas. Mas sou eu mesmo, contando com Franca de 1975 a 1992 e com o Dharma de 1993 a 1997. As pessoas não consideravam o Dharma como parte do time da cidade, mas o título que ganhamos eles absorveram para o Franca Basquete. Com título conta (Risos). Faz parte. Era uma briga muito grande na cidade. Times fortes do Brasil na mesma cidade. Cadum, Fernando Minucci, Gema, Janjão e eu. Timaço mesmo o do Dharma. Quando acabou o Dharma eu fui para o Ribeirão Preto (Polti/COC). O técnico era o José Medalha, e em uma das conversas entre nós ele me chamou para jogar. Foi assim que começou a história do Ribeirão Preto.

BNC: Foi seu último ano jogando aquele de 1997. Você já sabia que ia virar técnico?
GUERRINHA: Eu sempre gostei. No Pan-Americano de 1987 eu ia com o Medalha (assistente) e com o Ary Vidal (técnico) ver todas as partidas. O Medalha anotava tudo e o Ary só olhava para os bancos, nem olhava o jogo. E eu perguntei pra ele sobre isso. Ele dizia: "Eu só fico vendo o comportamento do técnico , as reações dos atletas e o que muda com as substituições para eu fazer alguma coisa. A parte de treino e técnica vocês (jogadores) e o Medalha tomam conta". Ele tinha este discernimento. O entendimento dele de banco era incrível. Mas de treino ele era ruim. Os assistentes é que comandavam mesmo. Medalha, o próprio Waldyr Boccardo. Agora, de gestão de grupo, de banco, ele era o melhor. Melhor mesmo.

BNC: Antes de entrar na sua vida como treinador deixa eu puxar ainda um pouco dessa questão de seleção. Você vinha de uma escola francana que se baseava em defesa e chegava na seleção e via Marcel e Oscar arremessando muito de três, a especialidade deles. Como era aquilo pra você? Foi um choque?
GUERRINHA: Eram duas escolas diferentes. A do Sírio, com Marquinhos, Oscar e Marcel, e a de Franca, uma família, todos se ajudando. Para você ter uma ideia de como eram as coisas no Sírio, quando tinha falta técnica pra eles quem saía mais rápido batia o lance-livre. Nós, não. Era coletivo. Totalmente diferente. Ali na seleção eu aprendi que toda religião te leva a D's. Não existe certo e errado. O certo a gente sabe que é utopia. Dentro dessa época era tudo muito contraditório pra mim, mas nas duas esferas eu conseguia navegar.

BNC: Tem alguma história engraçada com eles dois, Oscar e Marcel?
GUERRINHA: Ah, várias. Um jogador passava por mim, não tinha rotação e eu fazia falta. Aí vinham Oscar e Marcel perguntar se eu estava maluco de fazer falta. Eu não entendia porque eles falavam aquilo, até que eles diziam: "Deixa os caras fazerem de dois e a gente faz uma de três". Teve um jogo na China antes de irmos para as Olimpíadas de Seul em 1988 que ganhamos da Espanha de mais de 60 pontos. Depois enfrentamos a China. Eu era o armador. A gente atacava, mas o Oscar não voltava. Eles vinham com cinco, a gente defendia com quatro. Eu peguei a bola lá na defesa, dava pro Oscar e ele nem ia pra bandeja. Livre ele arremessava, e acertava de três. Até que o armador chinês percebeu e ficou no Oscar. Ficou um jogo de quatro contra quatro, até que o Marcel ficou no ataque também. Aí éramos eu, Gerson e Israel defendendo, com Oscar e Marcel do outro lado o tempo inteiro (risos). Erravam os chineses, e a gente passava. Os dois malucos arremessando de três. E acertando sem parar. Eles eram incríveis, cara. Os dois e o Ary tinham umas inovações que eram diferenciadas à época. Lembro que fomos ao Sul-Americano da Colômbia em 1985 e o armador titular era o Nilo (Guimarães, hoje supervisor de Mogi). Os caras estavam tão endiabrados que a final começou e matamos oito bolas de três seguidas com Nilo, Oscar e Marcel. A gente olhava do outro lado e estavam todos assustados. Estatisticamente o nosso time era o que pegava mais rebotes, sabia? No Mundial de 1986 o time que pegava mais rebotes era o nosso, e do torneio o Gerson, Israel e o Oscar foram os três primeiros no quesito. E o Arvydas Sabonis estava lá jogando, hein. O aproveitamento deles era de mais de 60% dos três. Como você vai proibir? Não pode.

BNC: Essa geração ganhou pouco? Em termos de medalha foi apenas a do Mundial de 1978, nas Filipinas.
GUERRINHA: Difícil dizer. É porque na época não era dividido como são hoje os países. Hoje há maior quantidade de seleções. Antes era Brasil, Estados Unidos, Iugoslávia e União Soviética. Olha como era a União Soviética. Era brincadeira. Muito difícil chegar ao pódio. A não ser quando tinha uma geração especial. O Brasil teve duas – do Wlamir e Amaury, e do Oscar e do Marcel. Hoje você tem 20, 25 seleções jogando em bom nível. Antigamente pra chegar entre os três era mais difícil.

BNC: Falando destas duas gerações, por que esta geração sua tem problema com a do Wlamir e Amaury?
GUERRINHA: Não acredito que seja um problema de geração, não. Eu particularmente tenho um relacionamento ótimo com o Amaury, ótimo com o Wlamir Marques também. Pode ser que Oscar e Marcel tenham problemas com eles, mas da minha parte e posso citar até o Cadum também não há problema algum. Muito pelo contrário. A gente tem uma admiração muita admiração, um respeito muito grande pelo que eles realizaram. Acredito que o que você esteja dizendo seja um problema muito mais entre eles (Oscar e Marcel) do que um problema de geração em si.

BNC: E onde você, como jogador (na foto ao lado ele está marcando ninguém menos que Drazen Petrovic), se coloca no meio disso tudo? Tem muita gente que diz que, se tivesse jogando hoje, você certamente estaria ou em Europa ou na NBA…
GUERRINHA: A gente nunca vê por aí. A gente sempre se acha ruim. Quando eu era jogador sempre fui muito disciplinado, aplicado dentro de quadra. Acho que jogaria muito bem na Europa, mas acabou não acontecendo. Ia rolar na década de 80 na Itália, mas quando fui os jogadores italianos fizeram uma greve lá e não aconteceu. Naquela época para você ir pra Europa era mais difícil do que ir hoje para a NBA. Só ia cestinha, essas coisas. Oscar, Marcel, essas coisas. Israel, o pivô que era, foi para a segunda divisão.

BNC: Aí você começou a ser técnico em 1997…
GUERRINHA: Quando fui para Ribeirão já tinha 37, 38 anos. Já queria parar e falei para o Chaim Zaher, diretor do COC. Disse a ele que queria ser gestor do time. Aí ele: "Eu não vou ter grana pra te pagar como gestor e outro técnico. Você vai acumular as funções". Falei pra ele que queria estudar dois anos, fazer cursos, mas não deu certo. Eu não pedi para ser técnico. Foi ele que me colocou de treinador (Risos). No segundo ano do Ribeirão Preto eu era o técnico e fizemos a final contra Franca. Foi muito incrível e muito rápido. Fomos vice-campeões brasileiros dois anos. O Edvar chegou, eu decidi sair e três meses depois eu fui chamado para tocar o projeto de Bauru. Tudo também muito rápido. No primeiro ano nos classificamos para o Nacional da CBB via Paulista. No outro já fomos campeões Paulista e Brasileiro, além de vice Sul-Americano (perdendo do Vasco do Flor Melendez na prorrogação).

BNC: Até a temporada passada era o maior título internacional de Bauru, hein…
GUERRINHA: Ah, sim, era mesmo. Foi uma festa incrível na cidade essa época. Fiquei cinco anos em Bauru, até que acabou o patrocínio da Tilibra.

BNC: E como foi ser campeão brasileiro como técnico? É uma sensação diferente da de um atleta?
GUERRINHA: Completamente distinta a sensação. Você tira uma pressão. Muita gente só te avalia bem se você é campeão, se dá resultado. Você pode ter um bom trabalho e não ter resultado. E há casos de trabalhos ruins com resultados bons. Acontece em todas as esferas. Veja aí o caso do LeBron James. O cara era criticado pra caramba até ganhar o primeiro título dele na NBA. Acaba que somos muito avaliados pelos resultados. Olha aí o exemplo do Demétrius no Minas. Dificilmente ele será campeão, mas que trabalho excelente ele está fazendo. Quando se é campeão a pressão sobre você diminui. Ser campeão é a premiação de algo feito com muito sacrifício. É um alívio muito grande.

BNC: Isso é engraçado. Você já é o terceiro ou quarto técnico que fala na palavra 'alívio' quando descreve o sentimento da conquista. Por que isso?
GUERRINHA: É muito mais alívio do que diversão, tenha certeza disso. Principalmente no começo da carreira. Atualmente, sim, eu me divirto. Antes eu ganhava um jogo, um torneio, e já pensava no dia seguinte, no treino que teria que dar. Hoje, com mais maturidade, eu consigo me divertir mais. Meu time também me dá essa segurança. O que me incomoda muito é que tem muita gente que só fala de Bauru de 2014/2015. Mas ninguém fala do projeto que começou lá atrás, sete anos atrás, no primeiro NBB. Eu era o gestor do time. Sempre dizia: "Nós somos pobres, mas somos limpinhos. Aqui nós vamos fazer tudo direitinho". E o dia que entrasse dinheiro a gente faria um time para ser campeão. A mesma coisa acontece no futebol, né? A estrutura do Atlético Paranaense é incrível, mas sempre os resultados chegam porque há rivais que contratam mais, têm mais dinheiro, embora nem sempre paguem.

BNC: Nessa época de Bauru você treinou o Leandrinho. Como foi o começo com ele?
GUERRINHA: Um assistente meu, o Cássio, me falou que tinha um reserva do Palmeiras no Juvenil que era um estouro. Fui lá ver e era o Leandrinho mesmo. Quando fui, bati o olho, era aquele mesmo que eu precisava e trouxemos. Só tínhamos o Raul de titular, mas com outra característica. E, olha, vou te falar. O Raul, pai, é bem melhor do que o Raulzinho, viu. Sem tirar o mérito, nada, mas o Raul jogava muita bola, espetacular. Arremesso perfeito, drible, marcava muito. Aí chegou o Leandrinho, um jogador mais rompedor, alguém que infiltrar. Mas era um cara que carecia de muita coisa ainda. Fizemos um plano de trabalho com o cara e foi impressionante a evolução dele. Leandrinho só queria saber de treinar. Ele chegava 5h30 da manhã na porta do ginásio e quando estava fechado, sem ninguém pra abrir a porta, ele ficava do lado de fora fazendo parte física. Treinava igual a um maluco e dizia que seria NBA. E conseguiu.

BNC: Leandrinho foi um dos jogadores que mais te marcaram como técnico?
GUERRINHA: Foram vários. Um dos que mais admiro é o Vanderlei (foto à direita). E sabe por quê? Ele sempre foi um atleta limitado em termos físicos mas que fazia o que precisava ser feito. Ele sempre teve um foco profissional muito grande e rendia demais para a equipe. Leandrinho, por essa parte dele de querer muito, me marcou também. Ele é como o Garrincha. Fora da quadra ele não tem muita noção das coisas, do que atingiu, de onde chegou, essas coisas. Mas dentro do campo ele tinha um foco absurdo. Hoje tenho o prazer de trabalhar com o Alex. Jogador consagrado, cheio de títulos, mas um exemplo dentro e fora da quadra. Mais do que um técnico dentro da quadra, sabe. O Larry Taylor também, outro cara exemplar. Nível de comprometimento altíssimo.

BNC: Depois de Bauru, na primeira fase que terminou em 2003, você foi a Campos e também ganhou um título lá…
GUERRINHA: Sim, ganhamos um título estadual por Campos em 2003. Foi a segunda vez que um time de fora do Rio de Janeiro ganhou um estadual (Liga Angrense foi o outro). Lá eu vi um fato inédito. Ganhamos do Flamengo na final e eu vi diretor do meu time triste. O cara era mais flamenguista do que do time. Eu fiquei maluco com isso. Lembro quando cheguei era período de carnaval e me avisaram que o time ia voltar depois de não sei quantos dias. Eu falei: "Vocês estão loucos. Nada disso. Vamos treinar que comigo não funciona assim". Sabe o que eu fiz? Fiz cópia da chave do ginásio da cidade, eu mesmo abria o local pra treinar. Não achava ninguém na rua. A peixaria fechada, mercado fechado, tudo fechado. Perguntei pro cara do meu prédio e ele me disse: "Ah, Seu Guerra, agora eles vão todos pra praia. Só voltam depois do Carnaval mesmo". Fiquei um ano lá e antes de ir pra Rio Claro eu passei cinco meses em Phoenix acompanhando tudo com o Mike D'Antoni e a comissão técnica do Suns.

BNC: Não te chamaram pra ficar por lá, não?
GUERRINHA: Não porque aquilo ali é reserva de mercado. É muito difícil de abrir pra técnico de fora. No San Antonio é que abrem, mas você veja os outros. É raríssimo. Eu só consegui entrar lá por causa do Leandrinho. A franquia faz tudo pro jogador. Frequentava a reunião deles às 8h da manhã, aquela de planejamento de treino, de vídeo, essas coisas. Mas eu não abria a boca. Pra mim foi terrível não poder falar nada (risos). Depois fui pra Rio Claro, fomos terceiros do Nacional, mas logo o time terminou.

BNC: E aí sua história com Bauru recomeçou em 2007, certo? O projeto começou com a Itabom e o Grupo GRSA, e agora ganhou, digamos, outro vulto com o investimento do Grupo Paschoalotto. Você considera que ter pego o projeto de baixo, bem de baixo mesmo, te deu sustentação para quando crescer, crescer direitinho?
GUERRINHA: Concordo inteiramente com isso. Muita gente fala: "Bauru agora tem dinheiro e traz todo mundo". Mas quando a gente não tinha nunca falei sobre orçamento dos outros. Franca anos de patrocínio forte e não soube aproveitar. E quando perdia de Franca e outras equipes nunca falei sobre jogadores contratados, elencos caríssimos montados. Hoje a gente ouve e é chato. É da pessoa que pensa pequeno e não é profissional. Quando se é profissional você trabalha com humildade e tenta trazer, ajustar, para a sua realidade. Foi o que fizemos. Temos um Conselho Gestor, um trabalho completamente comprometido. Nossa base está começando agora e vai ser fortíssima muito em breve.

BNC: Te dá tristeza com a situação francana de hoje?
GUERRINHA: Olha, aprendi na minha religião (espiritismo) que a gente não pode ter dó, pena de ninguém. É preciso ter compaixão e torcer para melhorar porque quando o adversário melhora você cresce junto. Na hora que melhorar administrativamente volta a disputar títulos. O que não pode no basquete é ter a mentalidade do futebol – de primeiro ganhar títulos e depois ver o que vai acontecer em termos de estrutura e organização. Isso é ser dirigente pro torcedor. Tem que ser ao contrário. Deveriam ter feito igual ao que o Minas fez este ano. Um time mais novo, só molecada, sem estrangeiro. Não cair, melhorar administrativamente, fazer uma base e depois crescer trazendo um por ano. Trouxemos o Murilo. Este ano era o Alex. É que vieram duas oportunidades de mercado, como o Jefferson Willian e o Rafael Hettsheimeir, que não tínhamos como perder. Tudo sempre planejado e dentro da realidade. Nosso planejamento está rigorosamente em dia. Quando você passa a confiança para o jogador de ter um contrato de dois, três anos tudo fica até mais barato.

BNC: Pra fechar, alguns assuntos. Você foi assistente-técnico do Lula Ferreira na seleção em uma época muito conturbada. Saiu em 2007 quando entrou o Moncho Monsalve e vou te dizer uma coisa que eu nunca lhe disse. Todos com quem conversava na época diziam que você era o mais preparado para assumir. Que tinha a bagagem necessária, uma história com a seleção…
GUERRINHA: Eu fico muito feliz por isso, mas vamos lá. A nossa comissão técnica pagou um preço muito grande pelo momento daquela época. Era tudo muito conturbado. Muitas das coisas que estão sendo feitas agora, em termos de treinamento, de organização, foram idealizadas pelo Flávio Davis (também assistente) e pelo Lula Ferreira. Nós fomos vítimas daquele momento. Eram jogadores em começo de NBA, uma dificuldade incrível. Eles não sabiam o que queriam e até onde poderiam esticar a corda. Não havia comprometimento com o país, mas sim com os agentes e com os times. O mundo da NBA é assim. E aqui, por outro lado, não davam a segurança pra eles.

BNC: Vocês ficaram marcados por não terem levado o país às Olimpíadas, né?
GUERRINHA: Muita gente fala que não conseguimos isso, mas era outro momento. Os Estados Unidos hoje não jogam Pré-Olímpico por causa da classificação direta do Mundial. Na minha época de assistente não tinha isso. E outra coisa: nós nunca ficamos fora do Mundial. E essa comissão técnica aí ficou de fora do Mundial. Só foi porque pagaram convite. Ficamos por uma bola em Porto Rico (2003), outra em 2007. Depois os atletas entenderam que era preciso comprometimento com o país. Não adianta nada você ter milhões e não ser conhecido no país. Isso bateu nos caras depois de muito tempo. Hoje eles, mais maduros e há mais tempo na NBA, percebem que podem dar um pouco de tempo e do talento deles para o país sem problema com a franquia. Foi uma combinação de vários fatores. Nunca contei isso pra ninguém, mas depois do Mundial de 2006, no Japão, fui sondado para ser técnico da seleção brasileira. Fui chamado para ser técnico da seleção do meu país, mas decidi nem continuar a conversa. Caso fechasse ficaria parecendo que a culpa seria apenas do Lula, o técnico. Todos nós erramos. Não queria fazer como muitos fazem. Sair e logo depois voltar como técnico. Essa minha ética vale uma amizade minha com o Flávio e com o Lula que não tem preço. Cumpri um ciclo muito grande com a seleção. Foram 18 anos. Treze como jogador e cinco como assistente. Sem férias, nada. É lindo isso, não acha?

BNC: Sim, muito bacana. Mas você não sonha em ser técnico da seleção brasileira?
GUERRINHA: Olha, no momento eu acho que estou bem preparado. Maduro, principalmente. Mas não trabalho para isso. Não coloco isso como desejo número um da minha vida. Trabalho para mostrar aos demais técnicos brasileiros que não é porque o cara é estrangeiro que é melhor que a gente, não. Há excelentes técnicos por aqui, excelentes mesmo. Dou o exemplo do Flamengo. Trouxe um argentino (Gonzalo Garcia), não ganhou nada. Veio o Neto, organizou a casa, foi campeão mundial. No Minas a mesma coisa. Todo ano era um argentino. E nada contra argentino, por favor. Mas aí vem o Demétrius. Sem verba, sem estrela, olha lá o que ele está fazendo. Gustavo de Conti, no Paulistano, outro grande trabalho. Acho que o Magnano cumpriu o trabalho dele, mas eu hoje não trabalho pensando na seleção, não. Trabalho para ser um bom profissional para Bauru, onde estou muito feliz.

BNC: Você falou antes sobre análise de resultados. A imprensa de basquete do Brasil analisa demais pelas conquistas e menos pelo trabalho?
GUERRINHA: Não é a imprensa. É a nossa sociedade mesmo. A sociedade vive muito de rótulos. É a marca, é o currículo que contam. Se fosse pelo meu currículo eu seria titular de Bauru. Mas eu não sirvo nem pra completar treino mais. Acho que às vezes há muitas tendências, tipo a de que técnico brasileiro é ruim. Eu lembro que te procurei uma vez e te disse: "Fábio, quero te mostrar que técnico brasileiro é bom, que tem seu valor". Nós não podemos generalizar nem pro bem e nem pro mal. Há técnicos que estudam e há outros que não estudam. Você vê. Eu fiquei revoltado ano passado quando fui a um treino da seleção brasileira em São Paulo e o próprio Rubén Magnano me olhou atravessado. Poxa, eu fui um patrimônio da seleção no passado, joguei 13 anos. Será que se estivesse dando treino na seleção da argentina ele fecharia a cara e nem cumprimentaria um ídolo do passado? A gente aqui no Brasil não pode assistir a um treino. Tem que ser aberto. Óbvio que vai ter o seu momento tático, o seu momento mais reservado, aí você fecha e pronto. O que não pode é blindar. Aqui não é Estados Unidos. Culturalmente é preciso da abertura. E já falei isso para a Confederação. A CBB deveria colocar ao técnico como devem ser feitas as coisas também. Se não a seleção fica muito longe de imprensa, técnicos, ex-jogadores, torcedores mesmo. Na nossa época a gente recebia técnico de tudo que é canto.

BNC: E fora de quadra, quem é o Guerrinha?
GUERRINHA: Sou muito diferente fora de quadra. Sou um cara muito simples, muito tranquilo. É difícil, porque agora os filhos moram longe, mas quando podemos nos reunir é sempre uma festa. Os três são nascidos em Franca, mas hoje estão morando longe – o Guilherme em Ribeirão Preto, o Marcelo em Goiânia e a Carolina, agora nos Estados Unidos. Gosto de cuidar do meu jardim, de cozinhar e de cuidar da casa. Amo pescar. Não sou muito bom, mas eu gosto.

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