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Bala na Cesta

Como os Raptors foram de ‘time onde ninguém quer jogar’ a campeões da NBA

Fábio Balassiano

14/06/2019 11h02

"No começo foi difícil. Os jogadores não queriam estar em Toronto. Os técnicos não queriam estar em Toronto. Alguns jogadores chamavam a franquia de 'cemitério', porque sabiam que era jogar um, dois anos por lá, e se aposentar da NBA quase que como ato contínuo. Eu mesmo não sabia se queria estar em Toronto. Tanto que me ofereceram um salário, eu recusei e depois uma parte da franquia. E aí sim eu topei".

O depoimento, dado à Sports Illustrated mais recente, é de Isiah Thomas, um dos melhores jogadores da história da NBA e responsável por tirar a poeira da franquia Raptors em 1995. A história de luta, suor, derrotas doídas, poucos ídolos e dor teve seu ponto mais alto ontem à noite, quando o Toronto venceu o Golden State para conquistar o inédito título da liga.

A história do Toronto, apelidado pela própria torcida de "We the North", ou seja, "Os do Norte", na NBA é um pouco mais longa que a sua fundação em 4 de novembro de 1993 diz. Os Huskies foram um dos fundadores da BAA, liga que deu origem à NBA na metade do século passado. Os canadenses jogaram até 1946-1947, mas não fizeram parte dos primórdios da hoje estabelecida liga de basquete norte-americana por falta de verba. O tempo passou e apenas na década de 90 o Toronto voltou ao cenário pela bagatela de US$ 125 milhões (na época um recorde, mas hoje uma mixaria por um time).

Como parte do projeto de expansão de David Stern, o ex-comissário geral da NBA, a liga norte-americana abriu duas franquias no Canadá. Vancouver, que já se mudou para Memphis, Grizzlies e Toronto. O primeiro nome que veio à mente de todo mundo foi justamente o de Huskies, mas o dono, John Bitove, ficou com medo da marca ficar muito parecida com a do Minnesota Timberwolves. Um concurso com os moradores da cidade foi lançado, 14 nomes chegaram à fase final e o Raptors, abreviação de Velociraptor, foi o vencedor. O trabalho, porém, estava apenas começando.

Isiah Thomas, recém-aposentado de sua carreira brilhante como jogador em Detroit, foi convidado para assumir o cargo de gerente-geral. Recusou três vezes até que Bitove e seus sócios lhe ofereceram quase 10% das ações da franquia. Isiah topou e começou a trabalhar. Ligou para cinco técnicos, quando disse que a oferta de trabalho era de uma franquia de expansão, trabalho do zero e no Canadá ouviu não de todos. Foi em sua "bola de segurança" e acabou fechando com Brendon Malone, seu ex-assistente em Detroit para o mandato de uma temporada. Isso já começava a mexer com o orgulho canadense.

As dificuldades continuaram no famoso Draft de expansão da NBA. Os times protegem seus 8 melhores jogadores e os demais do elenco ficam à disposição para os novos times (no caso Vancouver e Toronto). Os disponíveis torciam o nariz. Ninguém queria sair de seu lar, os Estados Unidos, e ir jogar basquete de NBA em outro país.

Em 1995 o Chicago não havia protegido BJ Armstrong, que fez parte do time campeão de Michael Jordan, e Isiah selecionou BJ com a primeira escolha do Draft de expansão. Ótimo nome, certo? Nem tanto. Tão logo soube da situação, Armstrong avisou que não se apresentaria na pré-temporada e que não tinha interesse em jogar no Canadá. Thomas despachou BJ para o Golden State Warriors (vejam que coincidência!) por Carlos Rodgers e Victor Alexander, que mal jogaram com os Raptors.

A primeira temporada foi sofrida, obviamente, com apenas 21 vitórias em 82 jogos. Em todos os 41, casa lotada, ingressos vendidos com antecedência e um apoio irrestrito mesmo com um elenco abaixo da crítica. O time ficou na lanterna da conferência Leste o campeonato quase todo, mas houve um dia de gala.

Foi em 24 de março de 1996, quando os Raptors venceram simplesmente o Chicago Bulls, de Michael Jordan (36 pontos naquela noite) e Scottie Pippen. Damon Stoudemire, escolhido na sétima posição do Draft de 1995, já era o principal jogador da equipe mesmo sendo novato e fez 30 pontos e 11 assistências em uma das noites mais gloriosas da história do time. Naquele dia, quem errou o arremesso que poderia ter dado a vitória ao Bulls foi Steve Kerr, hoje técnico do Warriors.

Ao contrário do que se poderia imaginar devido ao acúmulo de derrotas e também com as várias recusas de jogadores e  técnicos em irem atuar por ali, a relação do time com a cidade ficou cada vez mais forte e passional. O orgulho canadense passa pelo time de basquete e os Raptors encampam tudo o que a cidade acaba por querer passar de mensagem para o mundo. O ginásio sempre fica lotado, o Jurassic Park, local ao lado da arena onde a torcida se reúne para assistir às partidas mesmo em um frio descomunal, sempre enche e o basquete acabou sendo uma das plataformas de união da cidade em torno de uma causa.

"No tempo em que morei lá deu pra ver o carinho dos fãs com a franquia. Não é só um time de basquete. É uma voz do Canadá que pode ser ouvida em todo mundo através do esporte, um alto-falante gigante. A torcida, é óbvio, quer vitória, mas a gente sabe que os Raptors vão além disso", afirma o brasileiro Guilherme de Paola, que antes de morar em Toronto nunca havia visto um jogo da NBA na vida, mas lá na cidade foi convertido à causa dos Raptors: "Digamos que os Raptors passaram a fazer parte das atrações da cidade. É impossível morar lá e não ficar conectado com o time, com as notícias, com os resultados, com os jogos. Esporte é inclusão, é diversidade, é pluralidade. São os valores que o esporte passam, e são também os valores que o Canadá como um todo passa. Normalmente as franquias da NBA são de uma cidade, de um Estado. Os Raptors representam um país, representam o Canadá. Isso é um pouco diferente e faz com que, como aconteceu neste playoff, o país inteiro se organize para torcer em torno de uma equipe só. Voltei a morar no Brasil recentemente e a ligação continua. É algo muito forte e ver a felicidade do povo de Toronto com o título desta quinta-feira foi maravilhoso", finalizou.

O tempo passou, a franquia ficou 3 anos seguidos sem conseguir mais de 30 vitórias até que o Draft de 1998 colocou uma possibilidade na frente de Isiah Thomas. Com a quarta escolha, o Toronto selecionou Antawn Jamison, mas logo o trocou para o… Golden State Warriors pelo ala Vince Carter. Conhecido pelo seu potencial físico e por sua elasticidade, Vince seria mais do que um jogador. Seria uma peça publicitária para vender a franquia. Deu certo. O Toronto entrou no mapa mundial do basquete a cada acrobacia do Vinsanity.

No mapa e nos playoffs. Com um pouco mais de rodagem, o elenco foi ganhando forma, adicionando veteranos e chegando a pós-temporada em 2000, 2001 e 2002. Até que Vince Carter cansou. Cansou e cansou mesmo. Começou a reclamar publicamente da franquia, da cidade, dos torcedores, dos técnicos e, absurdo dos absurdos, chegou ao ponto de dizer qual jogada os Raptors estavam chamando no ataque para as defesas rivais marcarem. Tudo isso com o objetivo de ser trocado, algo que aconteceu em 17 de dezembro de 2004. Era uma cisão difícil, dolorosa, um ídolo jogando pra trás o carinho dos torcedores e toda veneração depositada nele de maneira tão vil.

Naquela época já sem Isiah Thomas mas uma gestão mais arejada, moderna e internacional comandada por Bryan Colangelo, o Toronto decidiu voltar às origens não exatamente do basquete, mas sim da própria cidade. Mais plural, mais diversa, mais "quero quem esteja querendo ficar comigo" do que "mendigando" jogador no mercado.

Isso feria demais o orgulho canadense e dava retorno zero à equipe no longo prazo. Ao invés de investir em americanos veteranos que não queriam estar ali, como o próprio Colangelo admitiria depois, a franquia foi atrás ou de estrangeiros ou de americanos que tinham rodado o mundo. Se havia menos talento, havia mais disposição e vontade em representar a franquia e o país. A cidade que recebe bem os turistas e os imigrantes estava abrindo as portas de seu time de basquete para quem quisesse jogar por ali.

Foi assim que, com um jovem Chris Bosh como principal jogador, o Toronto voltou ao playoff em 2007 depois de cinco anos. No elenco, além de Bosh havia Anthony Parker, americano que havia jogado na Europa por quase uma década, o italiano Andrea Bargnani, o espanhol Jose Calderon, o também espanhol Jorge Garbajosa, o esloveno Rasho Nesterovic, o camaronês  Pape Sow e o croata Uros Slokar. Na incipiente globalização da hoje totalmente internacional NBA, ninguém era mais Babel que o Raptors no final da década passada. E estava dando certo, tanto que no ano seguinte o time repetiu a dose ao ir aos playoffs.

Pra azar do Toronto, a equipe não conseguia avançar muito e isso acabava minando um pouco da continuidade do projeto. Os veteranos ficaram mais veteranos, os estrangeiros começaram a ter problemas físicos, os que chegaram não ajudaram muito (Rafael Araujo, o brasileiro Baby, foi um deles), Chris Bosh começou a reclamar igual a Vince Carter e logo depois, ali em 2010, ele decidiu ir pra Miami. Era mais uma reconstrução para um time que, ali no começo da década passada, só havia vencido uma única série de playoff na história.

Mas o tempo é o senhor da razão, vieram Kyle Lowry e DeMar DeRozan, dois dos maiores ídolos da franquia, e o cenário de vitórias voltou. Desde 2013 são temporadas com 48+ vitórias, algo bem incrível, final de conferência em 2016, semifinais do Leste em 2017 e 2018 com os brasileiros Lucas Bebê e Bruno Caboclo no elenco, e o ponto alto neste ano com o título conquistado ontem em Oakland depois de vencer o Warriors por 114-110.

Masai Ujiri, o arquiteto deste Raptors campeão, também tem em si a veia estrangeira e certamente isso ajuda demais do ponto de vista comportamental. Nascido na Nigéria, Masai chegou em 2013 e logo detectou que a franquia e a torcida tratavam bem os estrangeiros. Se em Denver ele era um pouco estranho no ninho, ou seja, um estrangeiro na função de executivo de basquete na americana NBA, em Toronto todos os ouviam com admiração. Teve paciência com Dwane Casey, seu antigo técnico, mas sangue frio para mandá-lo embora ao final do último campeonato mesmo o treinador sendo eleito o melhor da NBA.

Teve, também, uma dose boa de loucura ao trocar DeRozan por um Kawhi Leonard lesionado e abrir espaço para Paskal Siakam, camaronês que também era uma incógnita. Com olhos de lince, Masai ainda conseguiu despachar a eterna promessa lituana Jonas Valanciunas pelo veterano espanhol Marc Gasol. O garrafão todo formado por Siakam, Serge Ibaka e Gasol é estrangeiro, algo raro em uma NBA que desde sempre sempre viu os homens grandes dominantes sendo americanos.

A vitória do Toronto é a vitória da persistência, da tenacidade, da insistência e da origem da cidade e do time. Os Raptors representam um Canadá plural, fanático por esporte, passional por seu time e visionário em questões de fora da quadra também. De patinho feio lá em 1995, a franquia se tornou apenas a quarta de expansão da NBA a levantar o troféu Larry O'Brien.

Se não dá pra dizer que o futuro é brilhante, porque o futuro depende muito do que Kawhi Leonard fizer (se ele sair de lá muda tudo), ao menos dá pra dizer neste 14 de junho de 2019 que o roteiro do filme teve um capítulo belíssimo assinado ontem à noite em Oakland.

A mesma Oakland que viu BJ Armstrong desembarcar por lá em 1995 ao dizer que ninguém queria jogar em Toronto. O mundo dá voltas…

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