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Bala na Cesta

Fala, Leitor: 'Quando o Carteiro chegou', por Flávio Franco

Fábio Balassiano

04/07/2015 09h04

* Por Flávio Franco

flavio1Primeiro sábado de inverno, manhã fria mas que prometia melhorar nessa loucura que é o tempo aqui em São Paulo. Enquanto o final de semana começava, eu aguardava pacientemente a vez para sentar na cadeira do barbeiro e ter a cabeleira devidamente tratada.

Mas como quase sempre acontece, mesmo depois de quarenta anos nessa terra, subestimei o inverno paulistano e já tremia de frio debaixo da minha camiseta amassada. A solução foi me esquentar na calçada em frente ao salão do barbeiro, onde um sol tímido tentava ganhar força no início do dia. Em pé mesmo, lia atentamente o "Caderno de Esportes", curioso pelas notícias requentadas do meu time enquanto esperava ser chamado.

gsw1Mas logo a leitura foi interrompida por um grito empolgado de "Golden State Warriors!" no melhor estilo "Vai Corinthians!" que estamos tão acostumados a ouvir. Assustado, levanto os olhos e quase perco de vista o autor daquela "saudação". Fora justamente um corajoso carteiro que continuava seu trote apressado e para quem consegui apenas retribuir o sorriso e o aceno típico de torcedor.

gswTão surpreso com o acontecido só então me dei conta que estava vestindo minha camiseta amarela, troféu da última viagem à Califórnia, com a frase "Strength in Numbers" (A Força nos Números), o lema do time campeão do Golden State nos recentes playoffs da NBA. Rapidamente o carteiro seguia apressado seu caminho, vestido de amarelo como todo carteiro, vestido de amarelo como toda a torcida do Golden State. Cada um de sua maneira, todos ainda comemorando o título do seu time após 40 anos de longo jejum…

gsw3Fiquei curioso sobre quem seria aquele carteiro. Outro apaixonado por basquete? Outro contaminado pelo espetáculo que é um jogo da NBA? Outro frustrado ex-candidato a atleta que acabou virando advogado, carteiro, professor de educação física ou jornalista? Ou um pouco de tudo isso, assim como eu? Alguém tão distante da minha vida e ao mesmo tempo tão próximo naquele instante, dois estranhos unidos por uma camiseta amarela promocional com difíceis dizeres em inglês. Perdi a chance de um bate-papo com ele que talvez fosse fazer essa coluna muito mais interessante. Mas, sem dúvida, tivemos ali mais um exemplo do poder bárbaro que só o esporte e a música têm de aproximar tantas pessoas com realidades, formação e culturas tão diferentes entre si.

gsw4E é exatamente esse poder do esporte que faz dele um grande negócio. E ninguém melhor que os americanos para promover isso. Com a expansão crescente desse enorme negócio, a inteligentíssima estratégia da NBA contagiou todo mundo globalizado. Contagiou crianças e adultos, espantados com o que um LeBron ou um Stephen Cury "da vez" são capazes de fazer, dentro e fora da quadra. Contagiou os chineses e os indianos. Brasileiros e argentinos. Africanos e europeus. Homens e mulheres, em todos os cantos, que agora correm atrás da bola laranja através de suas "SmartTVs" e de seus "Smartphones". Contagiou a mim e contagiou o carteiro que continuava o seu trabalho pelos endereços da vizinhança em mais um sábado de inverno.

mikeMas o ponto aqui não é o alcance mundial do basquete americano altamente internacionalizado, até porque isso não é novidade para nenhum de nós. O que realmente tira o meu sono é o quanto estamos aprendendo com todas essas lições diárias que recebemos da NBA em cada jogo, em cada evento de playoff ou mesmo em cada comercial no estilo "be like Mike". Mesmo aqui em nossa "pátria de chuteiras" 99% monotemática em termos de marketing esportivo, é cada vez mais comum vermos nossas crianças batendo bola ou passeando no shopping-center vestidas com a camiseta do Barcelona, com a chuteira colorida do Messi ou com o agasalho do Manchester United. Cada vez mais comum nossas crianças imitando as poses do Ibrahimovic ou do Cristiano Ronaldo em frente ao espelho.

neymarIsso tudo mesmo no futebol, que traz um forte "recall emocional" dos "times de coração" que ainda consegue ser transmitido através das gerações. E isso tudo mesmo no futebol, onde ainda somos capazes de revelar Ronaldos e Neymares, e onde milhões e milhões de torcedores ainda são apaixonados pelas mesmas cores. E mesmo no futebol, a concorrência com a enorme capacidade de organização, desenvolvimento, promoção e consequente poderio econômico das ligas estrangeiras vai levando a atenção dos nossos atuais e futuros "torcedores-consumidores" a cada dia que passa, cada vez mais rápido.

guga25E o que falar então dos outros esportes, como o basquete, que não possuem esse "recall emocional" em massa do futebol? Às vésperas de uma Olimpíada em nosso país, logo vamos começar a assistir as propagandas das grandes marcas, todas com belas imagens do Rio de Janeiro, combinadas com famosos e figurantes saltando obstáculos em alta velocidade, rompendo linhas de chegada, mergulhando, velejando, batendo recordes e até arremessando com precisão da linha dos três pontos. Porém, um breve olhar nas contas obscuras das nossas confederações, nos dirigentes "perpétuos", contratos suspeitos, calotes salariais, escândalos de corrupção e, principalmente, em todo o amadorismo que engessa a "gestão" esportiva no Brasil, é suficiente para mim ou para qualquer criança vestida de Messi, concluir que ainda dependeremos de "heróis" isolados como um Guga, um Cielo, uma Sarah Menezes, um Scheidt, um Arthur Zanetti ou mesmo um Leandrinho "da vez" para termos alguma chance de brilhar nas quadras, piscinas ou arenas. Tanto nesse quanto nos próximos "ciclos olímpicos". Triste demais.

gsw11Como um amante do basquete, ingenuamente adoraria ver torcedores na rua serem abordados por outros, todos vestindo com orgulho suas camisas do Franca Basquete, do Esporte Clube Pinheiros, ou do Brasília, do Bauru Basket. Ingênuo que sou, sonho em presenciar mais vezes o que aconteceu comigo e com o carteiro, em frente ao salão do barbeiro em uma manhã qualquer de sábado. Não tenho a menor dúvida que, se aprendêssemos apenas o básico com as grandes ligas, teríamos aqui espaço, dinheiro e público de sobra tanto para o encanto showtime da NBA, quanto para os campeonatos de basquete locais. Mas, infelizmente, essa "disputa pela audiência" nos mais variados canais é hoje uma enorme covardia, um massacre desproporcional, um verdadeiro Davi contra Golias, um 7×1 recorrente, algo tão absurdo como o carteiro do meu bairro querendo acabar com o G-mail…

* Flávio Franco é brasileiro e viciado em esportes há 40 anos.

Tem alguma coisa bacana pra dizer? Envie para fabio.balassiano@gmail.com que eu publico!

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