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Como Kawhi se tornou o craque transcendental do Toronto

Fábio Balassiano

27/05/2019 06h01

Getty Images/ AFP

O ano era 2016, mais precisamente no dia 13 de fevereiro, um sábado, véspera do All-Star Game de Toronto. Na sala de entrevistas do Jogo das Estrelas do domingo, Kawhi Leonard ouviu de seu agente a seguinte frase: "Está vendo todo mundo aqui neste ambiente? Você é o único All-Star que recebe menos de US$ 20 milhões nesta temporada. Você é um dos poucos que já foram MVP de finais e campeão da NBA neste local. Tem algo errado, não acha?".

Conhecendo Kawhi Leonard, atualmente com 27 anos, a resposta não deve ter sido nada diferente de uma mexida na cabeça, uma palavra rasa, algo assim. Então astro do San Antonio Spurs, ele havia assinado no ano anterior um contrato de US$ 90 milhões por 5 anos, considerado uma mixaria para os craques da NBA na época. Ninguém entendeu o que o Spurs ofereceu. Ninguém entendeu como Kawhi e seu time aceitaram. LeBron James, destronado por Kawhi na final de 2014, por exemplo, receberia US$ 30 milhões em 2016/2017 versus US$ 17 milhões do camisa 2 texano. Aquilo começou a mexer com Kawhi, que sabia de seu valor e de como ele era erradamente visto pela sua própria franquia. Kawhi sabia que era bem melhor do que seu salário, só que pra entender a sua personalidade e de onde vem a obsessão por melhoria contínua dele é preciso voltar um pouco.

Nascido e criado em Los Angeles, Kawhi jogou o colegial na Martin Luther King High School ao lado do hoje também NBA Tony Snell (Bucks), foi eleito o Mr. Califórnia, prêmio ao melhor jogador do Estado. Suas médias de 22 pontos e 13 rebotes impressionavam menos que seu potencial físico e sua forma de ser dominante dos dois lados da quadra. Ele ainda era um diamante bruto a ser lapidado, motivo pelo qual não recebeu grandes ofertas de faculdades de renome.

Ethan Miller / Getty Images

Kawhi, então, foi pra pertinho, em San Diego State em 2009/2010. Antes de chegar à faculdade, porém, seu pai foi assassinado dentro do lava-jato do qual era o proprietário. Único filho de uma família com quatro irmãs, coube a Leonard reconhecer o corpo de Mark e abrir investigação (até hoje não descobriram o assassino). Muita gente relaciona esse fato ao seu primeiro ano na NCAA como sendo bem insosso. As médias de 12 pontos e 9,9 rebotes foram tão tímidas quanto ele sempre foi fora das quadras. Pouca gente sabe, mas o agora cracaço transcendental do Toronto Raptors não tem NENHUMA mídia social (Facebook, Twitter, Instagram, nada). Se agora com o mundo aos seus pés ele literalmente "anda" pra fama, exposição, essas coisas, que dirá anos atrás, quando ainda era um prospecto pouco encantador de San Diego. Sua forma de se expor sempre foi jogando bola.

No ano seguinte, um pouco do Kawhi que conhecemos hoje apareceu. Atuando como condutor do ataque de San Diego ele teve 15,5 pontos e 10 rebotes, levando sua faculdade ao Sweet 16 do March Madness, o campeonato nacional das universidades. Seu nome entrou no radar e Leonard decidiu tentar a sorte no Draft. A dúvida dos times da NBA é se valia a pena arriscar com um cara ainda tão cru na primeira ou na segunda rodada. A questão da personalidade reclusa também pesava contra ele. Nem a Confederação americana (USA Basketball) ligava pra ele. Até hoje Kawhi não jogou uma única competição internacional pelo país – nem de base e nem do adulto.

O Indiana Pacers arriscou em Kawhi na décima-quinta posição do Draft de 2011, mas imediatamente recebeu uma proposta de troca do San Antonio Spurs. George Hill, armador experiente e pronto para rapidamente dar o salto de qualidade pro Pacers, foi oferecido na negociação que envolveria a incógnita chamada Kawhi Leonard. O Pacers, de Larry Bird, topou e Leonard foi para o Texas logo depois que a greve dos jogadores terminou.

Pra sorte dele, o Spurs é uma das principais, se não a principal, franquia de desenvolvimento de atletas da história da NBA. Não foram poucos os jogadores que chegaram lá totalmente fora do contexto para ser um atleta da mais disputada liga de basquete do mundo e se tornaram grandes estrelas. Com Kawhi aconteceria o mesmo. Graças ao Spurs, claro, mas graças a ele também, obviamente.

"Eu usei Richard Jefferson [ex-jogador da NBA] como modelo para melhorar seu arremesso e também usei Kobe Bryant, porque Kobe tem uma boa mecânica de tiro. Eu não sabia se o Kawhi era fã dele ou não, isso não importava, mas usei fotos e vídeos deles dois porque acreditava ser algo que ele, com seu talento e potencial físico, poderia fazer. Mostrei-lhe as fotos de onde ele estava e onde queria que ele chegasse. Mas o diálogo não era longo, porque ele sempre dizia: 'Entendi, Chip, vamos pra quadra'. E íamos rápido treinar", diz Chip Engelland, assistente técnico e responsável por melhorar a mecânica de arremesso de Leonard.

Rato de ginásio, como ele é conhecido, seguiu a risca o plano estratégico da equipe, dormia no centro de treinamento e fazia de tudo o que lhe pediam. Tiago Splitter, brasileiro e ex-companheiro de Kawhi no Spurs, conta que não eram raras as vezes que chegava para fazer o seu trabalho individual com o time e via Leonard totalmente ensopado na quadra. Perguntava há quanto tempo tempo o ala de 2,01m estava treinando e ouvia, quase sempre, "creio que há três, quatro horas". Jogando em um time com as lendas Tim Duncan, Manu Ginóbili e Tony Parker, os holofotes não estavam nele, nem a pressão, mas as jogadas de Gregg Popovich começaram a ir na direção de um dos caras mais focados que a NBA já viu.

Na final de 2013, perdida pelo Spurs para o Miami Heat na Flórida, Pop chamava sistematicamente jogadas para Kawhi, já um dínamo físico e um cara capaz de dominar o jogo não apenas com chutes do perímetro, mas em jogadas de infiltração, atuações de costas pra cesta, corta-luzes e tudo mais. Leonard passou a ser o pacote completo, que também incluía ser um defensor cruel, um marcador implacável. Na decisão do ano seguinte contra o mesmo rival seu status mudou. Ele desbancou LeBron James, colocou o San Antonio de 3 Hall da Fama nas costas e guiou a franquia ao título. Tornou-se MVP e logo assinou a extensão contratual. Não no valor que merecia.

Seus números (de pontos, eficiência, rebotes e assistências) cresceram, sua importância também, seu nome começou a entrar em conversas de MVP, All-Star Game, primeiro time ideal da NBA, essas coisas, mas Kawhi, como sempre foi, jamais emitia uma palavra. O cara é tão recluso, mas tão recluso, que pouca gente sabe que ele é casado (com Kishele Shipley) e tem dois filhos. Sua resposta era na quadra, e mesmo quem convivia com ele sabia que sua personalidade de esfinge, quase sempre indecifrável, era difícil de desvendar. A chance de acontecer um estouro, uma explosão, existia, principalmente pelo fato de todos saberem que mesmo sendo o quarto, quinto salário do time, era Leonard que já pilotava a franquia Spurs.

Aí em 2016/2017 aconteceu o revés que mudou de vez a sua carreira. Totalmente dominante, Leonard fazia praticamente sozinho o seu Spurs vencer o favorito Golden State fora de casa (mais de 20 pontos de diferença) no primeiro jogo da final do Oeste até sofrer uma lesão ao descer e pisar no pé de Zaza Pachulia. O lance é bem polêmico e muita gente crê que Pachulia cometeu foi bem irresponsável ao se aproximar no momento da queda de Kawhi:

O fato é que na temporada seguinte ele jogou apenas 9 partidas alegando problemas no quadríceps, pé, quadril, tudo mais. Dentro da franquia ninguém conseguia falar com Kawhi. Ele pediu autorização para ouvir médicos em Nova Iorque e evitou diálogo com Duncan, Manu e Parker, os mais experientes da equipe. Na cabeça dele estava claro: seu tempo em San Antonio havia acabado. A relação de confiança havia terminado.

Na cabeça dele a franquia não tinha feito tudo por ele. Gregg Popovich, um dos maiores técnicos da história, chamou-o pra conversar quatro vezes. Em nenhuma Kawhi respondeu. Não havia papo. Era hora de buscar um novo lar e mostrar ao mundo o craque transcendental que ele poderia ser. Ele pediu pra ser trocado. Imediatamente o Los Angeles Lakers colocou o elenco inteiro à disposição. O Spurs afirmou que queria despachá-lo para outra conferência, sabedor do estrago que o rapaz poderia causar no Oeste. Eles estavam certos.

O Toronto, então, arriscou ao ceder seu jogador-franquia (DeMar DeRozan) por um Kawhi Leonard que vinha de lesão grave e com contrato que expira ao final dessa temporada, mas deu a ele exatamente o que precisava: carinho, admiração da torcida, protagonismo exclusivo, a bola em suas mãos e a chance de, com ele no comando, guiar um time nas costas até onde seu talento permitisse. Seus números explodiram (26,6 pontos, 7,3 rebotes e surreais 50% de aproveitamento nos chutes), seus novos contratos também. Kawhi reclamava, e agora a gente vê que com toda razão, que a Jordan Brand (Nike) lhe dava pouca atenção. Assinou com a até então inexpressiva New Balance um contrato milionário e de cinco anos, passando a ser um dos jogadores mais bem pagos do segmento (estima-se um ganho anual na casa de US$ 10 milhões por seis temporadas). A Nike se arrepende amargamente de tê-lo preterido.

O que ele conseguiu está aí: o Raptors chegou à primeira final da NBA de sua história depois de bater na trave por anos e anos. No playoff, uma bola improvável contra o Sixers no jogo 7 pra decidir a série e domínio físico, técnico e mental contra Giannis Anetokounmpo, que provavelmente será eleito o MVP do campeonato (mais aqui).

Se sua personalidade continua sendo indecifrável (há rumores que ele não continua em Toronto mesmo se ganhar o título por lá – e há o contrário também, ou seja, os que dizem que ele permanece com o Raptors independente do resultado da decisão), Kawhi é o único ser humano deste planeta capaz de minimamente desafiar o Golden State Warriors na final da NBA que começa na quinta-feira no Canadá. Frio, forte, decisivo, cerebral e com instinto assassino na medida certa para lhe fazer aniquilar os adversários e também envolver seus companheiros, Leonard chegou à maturidade no mesmo momento em que seus golpes estão totalmente afiados.

É óbvio que os Warriors são os favoritos nesta que será a quinta decisão consecutiva, algo que apenas o Boston Celtics das décadas de 50 e 60 havia conseguido, mas o Toronto tem o mando de quadra, o Golden State virá sem Kevin Durant e DeMarcus Cousins neste começo de decisão e o Raptors tem Kawhi Leonard. Só o Raptors tem Kawhi Leonard. E ninguém mais.

Isso pode ser o suficiente para a NBA conhecer um inédito campeão. Existem grandes jogadores, craques, estrelas e superestrelas na liga. Kawhi está um patamar acima. Dominante dos dois lados da quadra, ele sabe que no basquete mundial não existem cinco caras que, bem fisicamente, jogam tanta bola quanto ele.

Boa sorte ao Warriors, que tem, também, a missão de pará-lo.

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