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Bala na Cesta

Personagens do Basquete Brasileiro: Maria Helena Cardoso (Parte I)

Fábio Balassiano

27/07/2016 01h03

maria1A história do basquete feminino brasileiro se confunde com a de Maria Helena Cardoso. Maria Helena Cardoso é, na verdade, na essência, de fato e de direito, o basquete feminino brasileiro. Nascida em Descalvado há 76 anos, fez parte da primeira geração que brilhou internacionalmente, conquistando o bronze no Mundial de 1971 em São Paulo (4,5 pontos de média) e o primeiro ouro da história da modalidade no Pan-Americano de 1971 em Cali, Colômbia.

Como técnica, formou um punhado de atletas (Paula entre elas), deu a geração de Paula, Hortência e Janeth a chance de ganhar o primeiro título (o Pan-Americano de 1991) e levou o grupo a primeira Olimpíada (em Barcelona, 1992). Por clubes, abocanhou três mundiais interclubes (dois pela Ponte Preta em 1993 e 1994 e outro pelo BCN em 1998). Maria Helena Cardoso é uma personagem do basquete brasileiro sem dúvida alguma.

maria3BALA NA CESTA: Queria que a senhora começasse a falar da sua vida primeiro. A senhora nasceu em uma cidade chamada Descalvado, do interior de São Paulo. Era uma família de dez irmãos, nove mulheres e um homem, e havia algumas que jogavam. É isso?
MARIA HELENA CARDOSO: Sim, é isso. Uma das minhas irmãs que jogava é a Maria Aparecida Cardoso, a Cida , mãe do Cadum, que jogou na seleção brasileira. Na minha casa era assim. Quando minhas irmãs iam jogar, todos íamos juntos. Nos intervalos do treino, eu brincava com a bola, arremessava, fazia exercícios com a bola de basquete. Assim que comecei. Foi engraçado que, depois quando já jogava, havia outras quatro irmãs atuando e queríamos montar um time da família. Uma ficou noiva, parou e não deu pra montar o time das irmãs. Meu pai, Osvaldo Cardoso, apelido Calá, foi jogador de futebol, minha mãe, Ana Cardoso, jogou basquete na escola, então a família inteira sempre gostou muito de esporte. Tem um vídeo da história da minha vida que o Museu de Descalvado fez em minha homenagem que fala um pouco dessa minha história.

maria8BNC: E como começa a sua história no basquete efetivamente?
MARIA HELENA: A cidade disputava Jogos Abertos, ali na década de 50. Comecei a jogar em 1954. No ano seguinte fui fazer um torneio em Piracicaba, jogando pelo time de São Carlos. Tiveram informações minhas, me buscaram em Descalvado e fui jogar por eles. Em 1956 a minha irmã Cida jogava no Pinheiros, capital de São Paulo. Ela queria me levar pra jogar lá para me desenvolver. Tinha 16 anos, muito jovem, meu pai não deixava eu sair de casa pra jogar basquete. Eram outros tempos, né. Como não podia ir morar na capital, ia treinar só nos fins de semana. Viajava seis horas de trem, treinava sábado, domingo e voltava pra casa no final da noite de domingo. Isso em 1956. Mas treinava muito, muito mesmo. Treinava e jogava pelo Pinheiros. Neste mesmo ano fui convocada para a seleção Paulista. Logo depois pela seleção brasileira. Em 1958, Piracicaba queria montar uma equipe para disputar os Jogos Abertos e montou uma equipe. Fomos cinco direto – eu, Eleninha, Delci e Genesia, de Sorocaba, e Zilá. Isso em 1958, hein. Aí fiquei em Piracicaba direto. Já havia me formado para ser professora, comecei a dar aula e jogava. Fui da primeira turma de Educação Física que houve na cidade inclusive.

maria11BNC: Na seleção, então, a primeira vez com 16 anos…
MARIA HELENA: Exatamente. E com uma coisa engraçada: quando cheguei na seleção, foi a minha primeira vez na equipe e a última da minha irmã. Fomos ao Sul-Americano do Equador em 1956. Logo depois, Mundial no Rio de Janeiro em 1957. Eu fui, mas ela não foi. Foram 16 anos na seleção brasileira, 156 partidas.

BNC: Você pegou literalmente o começo do basquete feminino brasileiro. Como era essa época?
MARIA HELENA: Quando entrei, em 1956, eram oito novatas e quatro das que tinham ganho o Sul-Americano de 1954. Então tinha muita coisa de novidade pelo basquete, e muita coisa diferente por ser um grupo totalmente novo, de idade e de entrosamento mesmo. A gente, por isso tudo, demorou a começar a ganhar. Fomos sentir um gostinho do que era vencer, disputar medalhas, a partir do Mundial de 1971 em São Paulo, quando fomos terceiro, perdendo a medalha de prata no saldo de pontos mesmo. Foram quatro Mundiais com a camisa da seleção brasileira.

basketBNC: A geração da Paula e da Hortência é a que mais teve resultados internacionais, claro, mas a sua teve resultados internacionais interessantes e quase ninguém sabe…
MARIA HELENA: Sim, teve mesmo. Apesar das dificuldades da época, de um estilo de se fazer basquete totalmente diferente do que é feito hoje, fomos um time que teve um sucesso danado. E numa época que o basquete feminino não fazia parte do programa dos Jogos Olímpicos. Teve até uma história engraçada. Fizemos um jogo exibição com a seleção brasileira em Madri contra a Thecoslováquia. Era para o pessoal do Comitê Olímpico Internacional olhar e aprovar a nossa entrada. O problema foi que o México, que seria a sede em 1968, não quis. Depois os outros países não quiseram e o basquete feminino só entrou mesmo em 1976. A minha geração só jogava Sul-Americano, Pan-Americano e Mundial.

baske2BNC: Foi neste ano de 1971 que você teve uma das grandes glórias da sua vida esportiva, a conquista do Pan-Americano de Cali, na Colômbia…
MARIA HELENA: Foi o primeiro grande título do basquete feminino brasileiro. Ah, foi lindo, lindo, né, Bala. A gente tinha acabado de sair do Mundial de São Paulo, então a equipe estava muito bem treinava. Você vê, o tempo passa, né. Foi neste ano a primeira vez que o Antonio Carlos Barbosa foi de assistente técnico do Waldyr Pagan. Neste ano de 1971 ganhamos não só o feminino, mas também o masculino naquele Pan. E aí surgiu uma figura importante demais pro basquete, que foi o Luciano do Valle. Ele nos ajudou muito com entrada na televisão. Foi um momento de afirmação pro basquete, de desenvolvimento e popularização mesmo. Ele era repórter na época e se entusiasmou com o nosso esporte.

maria8BNC: Não sei onde foi que eu li, ou quem me contou, mas a primeira viagem para a Europa da senhora como atleta foi depois de 10 anos de seleção. Como não havia intercâmbio algum, e as competições naquela época eram na sua maioria nas Américas, você foi cruzar o oceano mesmo apenas depois de dez anos de seleção. É isso mesmo?
MARIA HELENA: (Risos) Como é que você sabe disso? É isso, é isso sim. Foi em 1965. Já estava com 25 anos. Esse intercâmbio fazia muita falta. Eram outros tempos, mas fazia falta, sim. Quando a gente ia jogar contra o pessoal da Europa era um desespero, era a cega mesmo. Quando eu era técnica mesmo era complicado. Fomos jogar com a China no Pré-Olímpico de 1992, o de Vigo, Espanha, e fazia cinco anos que a gente não sabia nada da China. Não tínhamos informação, vídeo, nada. Hoje é fácil, está tudo aí na internet. Pra estudar a mesma coisa. Eu, como treinadora, cansei de pagar viagem do meu bolso para ir a Itália, Espanha, Estados Unidos aprender. Para ir a Olimpíada a mesma coisa. E era engraçado, porque eu começava a pagar dois anos antes dos Jogos acontecerem e terminava de pagar dois anos depois. Comprava o pacote, ia para a Olimpíada, continuava pagando mais 24 meses. Quando estes 24 meses acabavam, entrava mais uma Olimpíada. Foram várias assim, viu. Ia pra aprender, para adquirir conhecimento. Pagava do meu bolso porque queria aprender e não me arrependo. Vi cada treino do Bob Knight, lendário treinador universitário americana, que me lembro até hoje. Adorava ele, adorava mesmo. Tinha um técnico da Colômbia que era assistente dele e que eu conhecia. O cara me mandava cartas com jogadas, método de treinamento, vídeos de treinamentos. Aprendi muito com isso.

maria4BNC: Eu vi um pouco da carreira da senhora já como técnica. Como era a Maria Helena jogando?
MARIA HELENA: Eu era uma jogadora tapa-buraco. Jogava em todas as posições, menos de armadora. Era polivalente, e era bom porque assim sempre tinha um lugar pra mim nas equipes, né. Levei uns seis, sete anos para ser titular da seleção. Era muito nova, estava chegando. Demorei um pouco para ser titular mesmo, mas no treinamento eu sempre entrava, tinha espaço. Sempre fui uma jogadora de equipe. Não gostava de aparecer, de destaque. Defendia muito, jogava mesmo pra equipe.

BNC: Imagino que nessa época de fim de carreira a senhora também treinava times em Piracicaba enquanto jogava, certo?
MARIA HELENA: Sim. Eu dava aula em uma escola. Eleninha em outra. E uma outra professora, considerada a bicho-papão de títulos de Piracicaba, em outra. Ali começou-se a criar um movimento interessante de basquete na cidade. Eram três colégios com boa estrutura e que tinham bons times. Em 1973 eu parei de jogar e comecei a minha carreira de técnico mesmo. Comecei como técnica da base, de divisões inferiores mesmo. A Eleninha é que era técnica do adulto da UNIMEP quando fomos convidadas para montar a equipe e todas as suas equipes da cidade. Todos de Piracicaba se acostumaram, e gostavam, da nossa equipe. Não só porque a gente ganhava título quase direto, mas sim porque tínhamos equipes em todas as categorias. Eram muitas meninas jogando e treinando conosco, algo que me orgulho demais.

maria2BNC: Foi nessa época que você conheceu a Paula?
MARIA HELENA: Sim. Estávamos com o time já em Piracicaba e eu fui ao Pan-Americano de Porto Rico de 1979. Foi o Pan que o Brasil perdeu das Ilhas Virgens no masculino. Aquele que o Bob Knight meteu o dedo na cara do Isiah Thomas em um treino. E eu vendo aquilo. Chamei uma vez a Paula e a Vania para ver se elas tinham interesse em vir jogar conosco. Quem nos ajudou muito nessa época foi a Marina Jurado, que jogou na seleção brasileira e que me conhecia bastante. Trouxemos a Paula ainda como juvenil. Ela era de Jundiaí, mas vimos nela um potencial grande para aumentar o nível da nossa equipe. Não sou muito saudosista, sabe, Bala. Não sei se porque vivi muito, vi muitas coisas, mas essa época foi muito maravilhosa. Passaram mais de 500 meninas pelas nossas mãos desde essa época. Todas com histórias de vida diferentes, todas que pudemos ajudar de alguma maneira. Hoje em dia com o Facebook eu recebo várias mensagens de meninas que foram treinadas pela gente e que mesmo longe do esporte me avisam que estão utilizando, em suas carreiras, a nossa metodologia de trabalho, de motivação, de capacitação. Isso é gratificante, sabe. Dá mais prazer do que ganhar. A gente não tinha o objetivo de ganhar, só. Eu sempre dizia a elas: "Eu não quero uma máquina de fazer cesta, um robô pra jogar basquete. Eu quero que vocês sejam as melhores pessoas que puderem ser". Ninguém chega ao topo se não tiver essa parte do valor humano muito apurada. Nosso primeiro trabalho, portanto, era de formação, de conhecimento da pessoa. Depois entrávamos com a metodologia esportiva, com o basquete em si. Somos professoras, né, educadoras. Ainda mais que estávamos dentro de uma universidade, a UNIMEP, então o nosso lado de professora convergia com o ambiente que estávamos. Foi um momento muito legal da minha vida e da Eleninha também.

lena2BNC: Foi fácil o seu começo como técnica, ou nada disso? Digo, na parte de ensinar, passar conceitos, metodologia…
MARIA HELENA: Fácil? Nada fácil. Foi bem difícil, Bala. No começo a gente teve muita jogadora que brigamos muito, demais mesmo. Passava o tempo e elas vinham dizer que estávamos certas, que o que fazíamos era para o bem delas. Elas pensavam que a gente era brava, que gostava…

BNC: Você sabe que eu te admiro bastante, mas que a senhora era brava, era brava…
MARIA HELENA: (Risos) Não é que era brava. É que eu queria disciplina. Sem disciplina você não chega a lugar algum, Bala. Para o atleta jovem, isso em alguns momentos gera uma interpretação ruim, equivocada. O jovem quer liberdade, né? Mas se você perguntar para essas jovens aí, que treinavam conosco, se elas gostavam, vai ver lá o que elas vão te responder. Todas vão dizer que hoje compreendem o que fazíamos. Elas se reúnem e ficam contando aquelas histórias lá. Eu, por exemplo, só me lembro do professor que mais me deu bronca, que mais exigiu de mim. O professor bonzinho eu não lembro. Você lembra?

maria5BNC: Não lembro mesmo…
MARIA HELENA: O exigente marca. Eu tive uma passagem neste sentido no Pan-Americano de 1991 em Havana, Cuba. Nesta época eu trabalhava muito para ter a Marta, grande jogadora, mais integrada ao grupo. No início tive uma dificuldade de fazer a Marta entender a filosofia, essas coisas todas. Teve uma vez que ela me disse: "Ah, mas você não larga do meu pé. Você só briga comigo". E eu disse a ela: "Parei com você então". Fiquei três dias sem falar com ela. Parei mesmo. Passou esse tempo, e ela veio me procurar dizendo: "Eu te fiz alguma coisa, Maria Helena? Você não fala mais comigo…". E aí eu disse: "Não foi você que pediu?". Jogador acha ruim, mas gosta que você exija dele. O grande técnico, o grande líder, não é aquele que exige todos da mesma maneira. É aquele que consegue descobrir a forma singular de falar com pessoas completamente diferentes. Cada pessoa tem uma porta de entrada que você, como líder, deve descobrir. Tem jogador que se você gritar com ele, ele não joga. Tem outros que precisam desse fogo. Aí é o segredo. Sempre pedi a D's para me dar a palavra certa, na hora certa. Para que eu pudesse falar e ter a resposta certa da pessoa. Isso sempre norteou muito a minha vida. Sempre fui honesta, e sabia que tinha Alguém olhando. Bala, sou uma pessoa de fé. Vou lhe dizer uma coisa. Sabe aquela bola de fim de jogo que cai? E aquela bola que não cai? Pode ter certeza que a bola que cai é daquela pessoa que treinou muito, mas muito mesmo. É a bola do mérito, é a bola do merecimento, é a bola da pessoa que lutou muito para fazer aquilo ali acontecer. Se você treina muito, se teu grupo é coeso, a bola vai cair. É a bola do merecimento que eu sempre falo. Não é detalhe. Acredito muito nisso em toda vida. Se você é honesto, trabalha direito, faz as coisas de forma correta, não tem como dar errado. Meu trabalho sempre foi norteado nisso. Eu errei? Sim, errei muito. Mas sempre tentando fazer as coisas corretamente.

CONTINUA…

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